QUE VIDA É A NOSSA - Indústria da Beleza em tempos de COVID-19.

Indústria da Beleza em tempos de COVID-19

By Chiara Pussetti

 

Uma reflexão na base da entrevista da Chiara Pussetti para o programa radiofônico "Que vida é a nossa?" da Antena 1, da jornalista Eduarda Maio


https://www.rtp.pt/play/p7224/que-vida-e-a-nossa

Que vida é a nossa? O que está a mudar, em que direção vamos, como queremos ser?

A pergunta é interessante especialmente porque remete a questões muito relevantes do ponto de vista da antropologia, questões ao mesmo tempo individuais e coletivas, porque têm a ver com imaginários, desejos, aspirações, expectativas, e ao mesmo tempo com ideais hegemónicos e padrões dominantes, na base dos quais definimos os contornos imaginários da nossa vida, e até do nosso corpo e subjetividade, no futuro.

Quando falamos de como será a nossa vida, pensamos na qualidade e no estilo da nossa vida, no nosso bem-estar e satisfação pessoal, na felicidade e em como queremos ser e nos tornarmos como pessoas. O projeto que coordeno no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, EXCEL.  “Em Busca da Excelência” estuda justamente a relação entre estes ideais e desejos e as práticas concretas de auto-melhoramento e promoção de bem-estar em vista do futuro.

Esta investigação começava com a constatação que face às ameaças da insegurança económica curiosamente aumenta o consumo de produtos cosméticos e de procedimentos estéticos. Este fenômeno, amplamente documentado em muitos outros contextos afetados por crises financeiras, foi definido pelos economistas lipstick effect o ‘efeito batom’. As motivações são múltiplas e eu diria bastante intuitivas: melhorar a autoestima e a autoconfiança, criar uma impressão agradável, ter boa aparência profissional, aumentar o poder de atração sexual, as hipóteses de sucesso social, a sensação de estar a cuidar de nós próprios e a autovalorização.
A ideia de melhoria individual para alcançar uma vida melhor não pode obviamente ser desvinculada de uma ética neoliberal, que incentiva a autodisciplina, a autovalorização, o autocontrole e a responsabilidade individual. A aceleração dos progresso tecnológicos dos último cinquenta anos e a sempre maior democratização de produtos e intervenções para alterar a nossa biologia, transformaram radicalmente a forma com a qual pensamos a nós próprios no futuro, o imaginário sobre os objetivos passíveis de serem alcançados, e até foram criados novos regimes de esperança relacionados com o melhoramento do indivíduo, do seu futuro, e da espécie humana, através da manipulação do genoma.

O nosso universo tecno-cultural ampliou-se com uma velocidade impressionante. Torna-se vulgar ocupar a pausa do almoço com tratamentos de rejuvenescimento, tomar suplementos alimentares para remodelar a silhueta, efetuar implantes capilares ou eliminar pelos cutâneos para sempre, e assim por diante.

Tornam-se ao mesmo tempo parte do nosso imaginário as interações homem-máquina; as bio-impressoras; as práticas genómicas, informáticas e robóticas; as inteligências artificiais; e os organismos geneticamente modificados.

Estava a trabalhar sobre os efeitos de uma crise (a recessão económica) e de repente entramos numa outra crise desta vez planetária, sanitária e política, a pandemia COVID-19. Como antropóloga, e sempre pensando na base da minha investigação atual, não posso não me interrogar sobre os impactos deste momento de profunda incerteza nas práticas e nos desejos das pessoas. Acho que depois da pandemia, nada será como antes. Muitas coisas já mudaram e continuarão a mudar. As formas de viver a sociabilidade, a cidade, de consumir, de desejar, de estar, de nos imaginarmos no futuro. Se não podemos imaginar um lipstick effect, devido ao emprego obrigatório das máscaras, é bastante previsível que assistiremos a algo que podemos definir rimmel effect. Os consumos online de produtos de estética e bem-estar têm se mantidos elevados e numa primeira análise qualitativa dos comportamentos dos consumidores posso afirmar que o COVID-19 não diminuiu o desejo de beleza e a vontade de cuidar de si. Durante o período da quarentena entrei em contato, através de redes informais de amizade e de social media, com acerca 180 mulheres entre os 30 e os 60 anos. A maior parte delas relata ter adquirido produtos de cosmética e maquilhagem online, ter efetuado experiências estéticas caseiras, desde a pintura dos cabelos, até à depilação e à aplicação de máscaras de beleza. Em muitos casos falaram explicitamente destas práticas como ‘rituais’ de auto-cuidado para manter a autoestima e uma certa normalidade face à emergência. Mais do que a metade das mulheres com as quais conversei reportaram ter consultado ou acompanhado sites e blog de conselhos sobre o cuidado estético durante o confinamento domiciliar. O tema da responsabilização pessoal é extremamente presente no discurso destes canais de informação mediática. Uma rápida panorâmica dos sites destinados às beauty routines durante a quarentena põe em evidencia as principais mensagens: “o estar em casa não é desculpa para não cuidar”, “estar á vontade não significa desleixo”, “conforto não justifica a falta de estilo”, “relaxar não é descuidar”, “a beauty routine é um ritual de emergência que ajuda a manter o equilíbrio emocional, controlar o stress e a normalizar o quotidiano”, “para aguentar a ansiedade do COVID-19 nada melhor do que a make-up therapy”; “sobreviver ao COVID-19 cuidando da nossa beleza”. O cuidado da aparência é portanto considerado um ato fundamental para preservar ou até melhorar o estado de saúde em geral. Cuidar da superfície para curar e sanar profundamente.

O discurso subjacente fala-nos de moralidade, autovalorização, responsabilidade, controle. Até na quarentena temos o corpo que merecemos, e se este se afasta dos modelos hegemónicos de perfeição é porque somos negligentes, desleixados, preguiçosos, desmoralizados. Disciplina e controle corporal entram no âmbito da esfera individual, feita de valores, aspirações, desejos, expectativas, anseios, imaginários e consumos.

Estas disciplinas corporais assumem portanto forma voluntária: são escolhas livres e autónomas, incentivadas e legitimadas pelo discurso mediático. Os discursos: 1. médico (cuidado da pele, medidas ideais, índices de gordura corporal, saúde dos cabelos, retenção hídrica, envelhecimento, práticas de higiene, prevenção de patologias e de condutas de risco, controle de excessos); 2. moral (autoestima, valorização pessoal, responsabilidade, força de vontade, sucesso, empenho); e 3. mediático (globalização de imagens virtuais de beleza e de sucesso, tutoriais e fóruns de troca de experiências sobre como cuidar do aspecto como medida de emergência anti-ansiedade) garantem a eficácia destes novos modelos de dominação dos corpos, menos explícitos e declarados. Com a expressão ‘rituais de beleza’ já não falamos de práticas destinadas a disciplinar corpos e comportamentos, mas da adoção de ideais liberais de cidadania responsável, autonomia, empoderamento e capacitação. Estamos mais a falar em valores, aspirações e desejos individuais que estão ligados a um modelo de corpo-norma, a consumos e a modos de vida específicos.

Além da palavra ‘responsabilidade’ tanto nas entrevistas assim como no material que consultei online, as palavras-chave da beleza em tempos de pandemia são ‘ordem’ e ‘ritual’. Que as situações de crise sejam geradoras de rituais - destinados a reconstituir a ordem, controlar a sensação de emergência, fortalecer o sentimento de identidade, restabelecer equilíbrios e estruturas - é algo que antropologia sempre verificou em todas as sociedades humanas. Laicos ou devocionais, os ritos associados à pandemia são cada vez mais evidentes e fazem parte do nosso quotidiano. Assim como cuidar do próprio aspeto, também as canções das varandas, os tributos e os aplausos, os arco-íris, as velas às janelas, as procissões, os arco-íris com a escrita “vai ficar tudo bem” pendurados às janelas, as orações coletivas, os desafios nas redes sociais, a revitalização de práticas antigas como fazer o fermento para o pão em casa, são rituais de emergência para acalmar as ansiedade e dar uma parvencia de controle e ordem. São portanto, todas, intervenções cosméticas (da etimologia grega kosmein ‘criar uma ordem, organizar, controlar, desenhar, criar harmonia e equilíbrio’).

Se manter ordem e é importante para o equilíbrio, também o regresso à normalidade tem os seus rituais. Os setores da cosmética, medicina estética, cabeleireiros, salões de beleza não por acaso reabriram já em 4 de maio, quinze dias antes de todos os outros serviços. As minhas entrevistas evidenciam que o cuidado estético profissional era desejo comum a homens e mulheres e que todos tentaram marcar algum tipo de serviço estético como primeira etapa de um retorno à vida social. Esteticistas e cabeleireiros estão a ser inundados de telefonemas para efetuação de reservas e para marcações de intervenções menos superficiais e mais transformativas, como botox ou preenchimentos para rejuvenescimento facial, já há longas listas de espera, havendo somente vagas em meados de outubro.

Mesmo num futuro no qual podemos pensar que as formas de sociabilidade serão bem menos presenciais e muito mais baseadas em plataformas de comunicação digital, a aparência continuará a ser considerada um valor principal. As manipulações corporais através de tecnologias médicas do design corporal (com as suas biotecnologias mimimamente invasivas e low-cost) associam-se sempre mais as alterações digitais da imagem, através do recurso aos filtros e às outras ferramentas de edição digital para a melhoria da aparência, presentes não só nas funções dos nosso telemóveis mas também nas ferramentas da maior parte das plataformas de videoconferência. Como construímos a nossa imagem? Que tipo de subjetividade mediática iremos produzir? Que pessoas queremos ser? De quais maneiras as imagens virtuais agenciarão as nossas inter-relações futuras? Estas são questões que são e serão cada vez mais relevantes e pertinentes para a análise antropológica no nosso futuro próximo.