#Diários de Campo - O desconfinamento, o regresso da estética e a "nova normalidade".

By Isabel Pires and Chiara Pussetti


Lisboa, 11 de Maio de 2020

E quando nos “desconfinarmos”, qual vai ser a primeira coisa que vais fazer?


Ouvi muitas vezes esta pergunta, de amigos, mais ou menos próximos. Respondi sempre, de forma muito sincera: vou abraçar os meus avós.

E o desconfinamento surgiu na segunda feira dia 4 de maio, de forma anunciada, não abruta, mas mediaticamente preparada. A “responsabilidade” individual e social substitui o meu slogan mental de “ficar em casa”. 

No entanto, enquanto escrevo este texto, decorreu a primeira semana. De forma surpreendente – e talvez só para o meu eu pré-covid – a minha primeira atividade permitida não foi a que imaginei nos muitos dias em que olhei pelas janelas para a rua que não podia frequentar. Não fui abraçar os meus avós.

No meu cenário inicial, o fim das restrições seriam como o levantar de um torniquete, o tiro que se ouve na linha de partida. Estaria de volta à rua e aos meus. 

Mas como tantas vezes acontece, a ficção suplanta a realidade em larga escala. 

Com um raio de ação mais alargado, o que me permiti fazer foram duas atividades que durante este tempo ideei de forma superficial: fui ao cabeleireiro e à esteticista habitual.

Tendo o sentido crítico que me compete por trabalhar em investigação num projeto que observa o corpo como o principal local de auto-investimento, e conscientemente orientada para observar todas as transformações estéticas que nele operamos, não deixa de ser irónico examinar como a minha celebração de uma pequena restituição da liberdade envolva precisamente esta representação.

Mais irónico se pensarmos que, a par de instituições que não puderam ser encerradas dado o seu carácter de bem-essencial (hospitais, supermercados e cafetarias), os primeiros locais comerciais que abriram portas foram os que operam no campo da estética.

Se restaurantes, lojas de vestuário e bibliotecas esperam ainda mais umas semanas para entrarem em funcionamento, as estruturas que concatenam cuidados com o corpo e higiene pessoal - como cabeleireiros, barbeiros, esteticistas e clínicas de tratamentos não médicos – entraram, num ranking imaginário de prioridades definidas pelos governantes, como bens de “prioridades-a-seguir-às-primeiras prioridades”.

As suas agendas cheias logo nos primeiros dias - tive dificuldade em conseguir o horário que queria- denunciam que esta ideia não estaria tão longe do absurdo como inicialmente se poderia julgar.  

Questiono-me, todavia, se mais do que a necessidade física, não estaria sublimada a necessidade de um retorno à normalidade. 

No entanto, e como fomos ouvindo durante o confinamento, essa “normalidade” seria remetida ao passado, assumindo as vestes de um “novo normal”.

Se no cabeleireiro as diferenças foram muitas – entrada de uma pessoa de cada vez; marcação obrigatória; uso de máscara; desinfeção de calçado e mãos - no centro de estética a diferença, e investimento da sua proprietária, foram aterradores.

Tendo trabalhado mais de uma década em cuidados de saúde hospitalares, tenho um sólido conhecimento das normas de higienização e segurança. No entanto nada me preparava para isto.

Nas três horas que estive a arranjar todas as unhas do meu corpo, conversando com a paciente, transpirada, sobrecarregada e, evidentemente apreensiva esteticista, observei o meu novo normal.

À entrada, com marcação e uso exclusivo do espaço, é-nos avaliada a temperatura com um termómetro que não necessita de contacto com pele. As questões seguem-se: Esteve em contacto com alguém positivo para a Covid-19? Teve sintomas nos últimos oito dias? Teve tosse? Febre? Mal estar? 

Não. Uffffffff. Passei para a segunda fase.

Na mesma entrada, com a porta que permanecerá sempre aberta, as solas dos meus ténis são desinfetadas com produto próprio e, ainda assim, revestidas com uma proteção de plástico. As mãos desinfetadas com álcool-gel em tempo controlado e é-me entregue uma máscara cirúrgica (apesar de ter a minha pessoal, também cirúrgica, mas dentro do espaço e por garantia de segurança preferem fornecer uma a cada cliente).  Se pretendermos levar o telemóvel para o interior, uma vez que casacos e malas são deixadas à porta, também este deverá ser limpo com compressa embebida em álcool.

Passando este processo sento-me na agora plastificada cadeira. 

Todo este ritual me deixa uma estranha sensação de déjà vu. As questões iniciais, as proteções de calçado, a máscara, a desinfeção rigorosa das mãos: estou outra vez no hospital e preparo-me para entrar na sala de cirurgia. Só me faltaria calçar as luvas e pouco mais.

À minha frente a Fernanda, a minha esteticista, sorri. Imagino. 

Agora temos de nos valer da imaginação. A Fernanda por cima do seu uniforme tem um avental descartável, luvas descartáveis, máscara e viseira. 

Como tem passado este tempo, Fernanda? Sou forçada a elevar a voz, agora entre nós está uma barreira de acrílico. 

Olho à minha volta e sou acometida por um sentimento de irrealidade. Estarei no sonho de um opiómano que cruza as últimas informações que tem de um guichet de repartição pública (culpa do acrílico de proteção) e de despersonalização de bloco operatório (os coloridos vernizes enjaulados em tristes caixas de plástico; os quadros removidos e substituídos por folhetos informativos de “como lavar corretamente as mãos”; os carrinhos de apoio que trocaram os pincéis pelas compressas e frascos de desinfetante)?

Começa o protocolo e abre-se o primeiro alicate (vem num pacote verde e reconheço imediatamente a sua proveniência: um autoclave, que serve para esterilizar, eliminando vírus, bactérias e fungos). Segue-se outro alicate; pinça; tesoura; lima, etc., num bailado de objetos que saem de mangas de plástico. Uso único, como sempre foram, e sempre esterilizados como deveriam ser.

As embalagens vão para o lixo. Mas qual lixo? Vejo baldes diferentes: “Grupo I, II” ou “Grupo III”? Tenho de fazer um esforço e ir buscar à memória as regras de separação de lixo: contaminados vs. não contaminados. Tanta nova informação por aqui.

Converso com a Fernanda. Pelo menos nisso a normalidade é-nos restituída. Mas, uma vez mais, é uma nova-normalidade. Está difícil, quebra de rendimento. Não me atrevo a alongar este assunto neste testemunho. 

Conversei um pouco mais com a Sandra, a dona-gerente do centro de estética. Elogio-lhe a eficiência do espaço. Ela sorri. Investiu muitos milhares de euros nos novos materiais e passou horas na internet a verificar regras. 

A Fernanda sua em bica debaixo de tanto plástico. Sempre que mexe em algo novo, tira luvas e substitui por novas. Não pode estar sempre a remover a máscara para beber água, além de que mais vezes vai à casa de banho e tem de desperdiçar mais material. Tudo muito caro, lembro-me disso.

Quando vou pagar – multibanco, claro – a Sandra diz-me que estão em promoção. O meu olhar confuso deve me ter denunciado. Que lógica opera que eu não compreendo? Se há um gasto mais elevado da sua parte porque ainda baixa os preços? Ela esclarece-me: todas temos direito a nos sentir bonitas. Se as minhas clientes podem estar a atravessar uma fase com menos rendimento não quero que se privem de se sentiram bem.

Fico sem fala. 

Dou meia volta, retiro as proteções dos sapatos à entrada, desinfeto novamente as mãos mas levo a máscara comigo (pode precisar, diz-me a Sandra, e assim já tem).

Olho novamente aquele espaço físico que nem o acrílico ou o plástico conseguem esconder a beleza da proximidade humana. Volto a pensar: 

Desde quando um centro de estética se tornou tão complexo como uma sala de cirurgia?



Texto Isabel Pires

Fotos Chiara Pussetti

Texto e fotos publicadas com autorização de Gracibela Centro de Estética (www.gracibela.com) com especial agradecimento à Sandra e à Fernanda.