Covid-19: o sentido da doença
Por André António
Desde que a pandemia se instalou e o termo “confinamento” passou a ser uma palavra de cada dia, que me fui deparando com variadas reflexões a respeito do sentido da doença, ou seja, do que significa para cada um de nós a experiência desafiante de atravessar esta pandemia. Obviamente que o “cada um de nós” reflete não apenas a nossa perspetiva única e pessoal sobre o assunto, mas também aspetos macroscópicos, que se prendem com a nossa condição social e económica. A crise não nos atinge a todos de igual forma e como alguém dizia “se é verdade que estamos todos nesta tempestade, também é certo que temos diferentes barcos para a atravessar”.
Dos artigos de opinião publicados em jornais às publicações nas redes sociais, aos vídeos que me chegam via email e WhatsApp, a indagação a respeito dos porquês desta inesperada transformação da nossa vida em sociedade revela-se como uma necessidade tipicamente humana. Não se trata apenas de responder aos porquês científicos do novo Coronavírus e da doença que lhe está associada, mas, também, e com elevado nível de urgência, a procura de uma aprofundada compreensão de como esta experiência nos transforma enquanto indivíduos e como sociedade e de que forma sairemos dela. Toda a doença exige um sentido, não apenas biológico, como, igualmente, psicossocial.
Esta busca de um sentido, inerentemente humana e que nos aflige a cada um de nós, não impede que, em todas as sociedades conhecidas, como a Antropologia tão bem tem mostrado, existam especialistas profissionais do sentido da doença. Nas modernas sociedades industrializadas, e no que diz respeito especificamente à Covid-19, o sentido da doença restringe-se frequentemente à explicação científica da patologia e, assim sendo, começaríamos, obviamente, por destacar a importância de virologistas, infeciologistas e epidemiologistas na produção desse saber, que cotidianamente é posto em prática pelos profissionais de saúde e autoridades reguladoras de saúde. Mas porque, para aquele que sofrem, a doença não se restringe à morbilidade física, mas contagia igualmente a dimensão psicológica e social da pessoa humana, outros profissionais do sentido poderão encontrar lugar de destaque para diferentes indivíduos ou grupos populacionais: desde psicólogos, padres e outros líderes da vida espiritual, passando pelos jornalistas e outros comentadores da vida social, sem esquecer os próprios cientistas sociais.
Na busca de um sentido para a doença, abrem-se diferentes linhas de interpretação. Numa frente de discussão, observa-se a procura de possíveis orquestradores da presente situação, dando lugar a uma partilha incessante de notícias (muitas delas “fake news”) nas redes sociais, a respeito da engenharia de laboratório que estaria por trás da criação do novo coronavírus, abrindo um novo palco de batalha onde se manifestam as tensões entre as duas grandes potências económicas da atualidade, a China e os EUA. Para lá das dinâmicas de acusação entre as duas potências (que implicam o envolvimento direto de importantes responsáveis políticos de ambos os lados), a corrida ao desenvolvimento de uma nova vacina/tratamentos eficazes merece um investimento de recursos por estas duas potências sem paralelo com o de outros países, evidenciando a relevância deste novo campo de batalha na disputa pela hegemonia global.
Num outro tipo de reflexão, esgrimem-se argumentos a respeito da relação entre o ser humano e a natureza. Alguns apresentam a tese de que o novo coronavírus representa uma resposta da natureza às agressões do ser humano, como se de uma punição se tratasse. Outros ainda, sem atribuírem capacidade deliberativa às forças da natureza, estabelecem, no entanto, um nexo causal entre o surgimento do novo coronavírus e a exploração e devastação humana de variados ecossistemas selvagens, até recentemente protegidos. Afirmam estes que, se não houver uma transformação mais ou menos drástica da nossa forma de produzir e distribuir riqueza, mais pandemias virão, ao mesmo tempo que outros os apelidam de ecologistas radicais e não vêm qualquer tipo de associação entre capitalismo e o surgimento do novo coronavírus.
Outra linha de debate público recorrente nos dias que atravessamos concentra-se na questão do equilíbrio entre a preservação da saúde pública e a sustentabilidade da economia, associada a uma questão delicada do equilíbrio entre confinamento social e o respeito das liberdades individuais. Num momento, em que se multiplicam, em diferentes países, manifestações públicas de cidadãos em protesto contra as medidas de confinamento social, este ultimo ponto de controvérsia relaciona-se, embora de forma implícita, com o problema particular que me ocupa no projeto de investigação “Excel”: a procura do aperfeiçoamento ao longo do processo de envelhecimento, nomeadamente, através do uso de biotecnologias. Efetivamente, o apelo à responsabilidade individual na adoção de comportamentos que previnam a propagação do vírus, as medidas de restrição de liberdade individual e o encerramento de atividades económicas, baseou-se num apelo, mais ou menos explícito à solidariedade entre gerações. Pois, embora as medidas adotadas visassem garantir a saúde de toda a população, desde muito cedo que os grupos vulneráveis, entre os quais, a população idosa, foram identificados. Assim, tratou-se de medidas restritivas para todos com a finalidade de preservar um pequeno grupo de pessoas que estaria verdadeiramente sujeito a um risco grave para a sua saúde.
Numa sociedade onde se verifica, desde há vários anos, um crescente discurso que advoga a responsabilização individual pela saúde e pela forma como se envelhece (e o uso de biotecnologias pelos idosos, que procuram um melhoramento da sua performance cognitiva, sexual e social, deve ser enquadrado nesta dimensão mais vasta), apelar ao sacrifício de toda a comunidade para salvar os mais velhos representa um encargo que dificilmente será suportado por muito tempo. À medida que as semanas vão passando e a crise económica e social se vai instalando vão surgindo, aqui e ali, propostas que visam o isolamento social exclusivo dos mais idosos e o restabelecimento das liberdades e direitos da restante comunidade. Até onde estaremos dispostos a pagar um preço pela saúde dos mais velhos sem cair na tentação de os isolar do resto da sociedade? Sendo que muitos dos mais idosos, bem antes da Pandemia, já viviam isolados do resto da sociedade (confinados nas suas casas ou confinados em lares e residências, com pouco espaço para a participação democrática na vida em sociedade, dentro e fora destas instituições), não será esta Pandemia uma oportunidade para repensarmos a forma como a nossa sociedade, desde há muito tempo, exclui os mais idosos?
Da experiência da presente Pandemia podemos e devemos extrair um sentido daquilo que parece desprovido de razoabilidade: a morte abrupta pelo vírus, a pobreza decorrente da crise económica, a incerteza em relação ao futuro. Certamente que não estaremos todos de acordo sobre qual o sentido de tudo isto, mas na procura de um sentido para a doença mobilizaremos os nossos recursos para atendermos à integralidade do ser humano: enquanto seres biológicos, na procura de uma resposta farmacológica para esta doença; enquanto pessoas, na procura de uma superação do sofrimento associado à doença e à crise económica e social; enquanto seres sociais, na procura de formas mais harmoniosas de vivermos em conjunto, com todas as nossas qualidades e imensas fragilidades.