A BELEZA NO MUNDO DA ALTA MODA. A MANEQUIM PORTUGUESA CATARINA LEITE

Por Chiara Pussetti e Isabel Pires

Numa esplanada do centro de Lisboa encontramos a manequim portuguesa Catarina Leite, ícone de estilo e da moda ao nível europeu desde os anos oitenta, que generosamente disponibilizou-se para conversar connosco sobre as alterações dos paradigmas de beleza nos últimos anos. Catarina Leite nasceu em Moçambique na tribo Macua. Aos 14 anos tirou o curso de manequim no John Bryan McCarthy. Trabalhou na Europa, Ásia, US e África com os melhores designers. Fundadora de uma marca de malas e acessórios (ValeryGirl) em Hong Kong Fundadora de Makua models uma escola de modelos em Espanha. Foi locutora, produtora do programa semanal com o nome (Insiro las raíces de la belleza) na rádio 3WRADIO online em Espanha.

Começamos a nossa conversa refletindo a partir da sua experiência profissional como manequim. No mercado global da moda, a correspondência com ideais hegemônicos de beleza é característica principal e necessária para conseguir sucesso profissional. O campo da indústria da moda, que se distingue pela centralidade da imagem do ponto de vista da inserção profissional e da empregabilidade, oferece uma perspectiva privilegiada para observar como funciona a construção de um ideal estético segundo categorias codificadas de ‘estilo’ ou ‘tipologias’ de corpos valiosos segundo os gostos e as preferências estéticas comercializáveis no mercado da beleza.

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Modelos e manequins são sujeitos aos mais rigorosos critérios e escrutínios estéticos e, portanto, mais alvo de pressões para moldar a sua imagem às expectativas do mercado. Na experiência da Catarina hoje em dia neste mercado muito mudou. “A beleza é um conceito muito relativo e neste momento a moda é menos exigente e mais abrangente, do meu ponto de vista perdeu-se a elegância, o glamour, a majestade” - afirma a Catarina – “na minha época éramos muito parecidas, tínhamos a mesma constituição, praticamente as mesmas medidas. Havia também as fora do padrão, as que não sendo tão perfeitas do ponto de vista das regras impostas, mas que, todavia, causavam impacto, quebravam o modelo, pela diferença e pelo carisma”. Mas então, pergunto eu em jeito de provocação, como a sombra serve para exaltar a luz, não será que estas modelos fora do padrão confirmam na mesma a existência de um corpo-norma? A Catarina prontamente responde: “Acabo de fazer um shooting a uma modelo negra lindíssima. Para mim uma beleza perfeita, 1,86m. Poderá ser demasiado alta para o mercado, tem 16 anos… umas pernas de 1,16m. Vou educá-la para ser haute-couture, high-fashion”. A indústria da moda em Portugal  não está pronta para este tipo de manequins, que não correspondem às exigência do mercado local e aos padrões de beleza valorizados.

“A beleza em Portugal é uma questão delicada - explica a Catarina. São mulheres com cara bonita, sorriso, olhos bonitos, mas o corpo é redondo. Modelos, manequins...é complicado encontrar pela própria genética da mulher portuguesa”. O mercado é mais dirigido às modelos do que às manequins... “os castings de publicidade pedem-nos pessoas vulgares, comerciais, ou pessoas famosas, que vendem pela sua popularidade, como o Cristiano Ronaldo. Ser manequim era um trabalho valorizado, que pedia uma formação rígida, dedicação, profissionalismo, disciplina. Isso praticamente acabou… estamos numa fase em que o modelo se tornou mais descartável”.

Face a uma exigência tão alta de perfeição, o que as modelos e as manequins estão dispostas a fazer para corresponder aos padrões dominantes do ponto de vista da idoneidade e adequação à procura e às tendências do mercado de trabalho? São estimuladas a melhorar, a se modificar através de procedimentos estéticos? Segundo a Catarina este é um mercado cruel, competitivo, feito de corpos rapidamente descartáveis.  “Se quero ser selecionada, supostamente devo estar impecável, perfeita. É o meu trabalho, a minha imagem. E isso não é fácil, como há outras cinquenta mil como tu a lutar para o mesmo espaço: tens de marcar a diferença. Acho natural que as pessoas recorram a procedimentos estéticos. Mas não é de todo uma obrigação ou exigência imposta pelo mercado… muito pelo contrário, procuramos belezas naturais! No máximo podemos aconselhar. Por exemplo: se tiveres uma cara fabulosa, mas um pequeno defeito, vamos tentar que tu entendas isso, que vais ter mais trabalho se o corrigires”. A questão dos tratamentos para o rejuvenescimento obviamente nem se coloca. É um mercado que valoriza o corpo norma – branco, alto, magro, jovem, correspondente nas suas medidas a um ideal dificilmente alcançável. Se para as manequins negras, ou asiáticas, é mais difícil conseguir as mesmas oportunidades e lhe é exigida uma performance e um nível de perfeição ainda maior, é todavia verdade que as agências em Portugal, pela experiência da Catarina, não tentam alterar as suas características naturais na direção de um modelo de beleza ‘branco’.

“Tenta-se sempre trabalhar com a beleza pura da pessoa, afirma a Catarina. É o que realmente vai impactar.”.

O mercado parece dominado pelas modelos do Leste Europeu, que têm muita mais facilidade de arranjar trabalho, independentemente dos mercados. “Na minha época a quantidade de modelos caucasianas era sem dúvida muito superior à de outras etnias. Para nós, as negras, o mercado era extremamente difícil pois para competir tínhamos de ser tecnicamente muito melhor, tínhamos que trabalhar muito e dar provas de que sim, nós as negras também tínhamos algo para oferecer à moda mundial.

 “Quando tive a oportunidade de viver na China - conta a Catarina - o que elas faziam era imitar o imaginário caucasiano, a moda e as modelos que a desfilam tinham que ter um ar europeu, ainda estavam parados nas semanas de moda de Paris e Milão.  As modelos negras que conheci nunca tentaram se alterar. Mas verdade seja dita: as maquilhadoras nos anos 1980/90 transformavam-nos em cinzentas praticamente. Não havia cores adequadas à pele escura, como agora. Era muito complicado”.

Entre as modelos negras que marcaram a diferença lembra a Grace Jones, a Naomi Campbell, a Iman e mais recentemente a Alek Wek. Haute-couture: eram gazelas, mexiam-se como panteras”.

Mas como a Catarina conseguiu sobressair neste mundo tão difícil?

“Custou-me muito manter e criar uma imagem. A concorrência que eu tinha, o aprender a sobressair.  Eu trabalhei com muitas modelos  exóticas, Galegas, Mexicanas, Venezuelanas, mulheres belíssimas!... Eu olhava para elas e pensava: vou para o casting para quê??? Tive que vencer muitas barreiras pessoais e de autoestima para conseguir!”.

Todavia não foi fácil, segundo a nossa entrevistada, ainda há muito racismo no mundo da moda.

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A Catarina aceita partilhar connosco uma história que a afetou pessoalmente.

“Estava a desfilar em Viena de Áustria, meados dos anos noventa, tudo fabuloso. quando se fecha o desfile sou eu com um vestido de noiva…. Mas quando entro metade do publico levanta-se e sai da sala com um ar empertigado e revoltado…. Percebi então porque raramente via  uma negra, uma mulata, vestida de noiva a fechar um desfile. Eu, em tom de brincadeira, cheguei a perguntar porque não podia vestir um vestido tipo a Sissi, a princesa? Os negros também se casam!

Com o tempo muitos criadores se aperceberam que nós, as negras, somos muito versáteis, podemos ser simples ou exageradas e tudo nos fica bem! Eu por exemplo neste momento estou loira e de cabelo liso e gosto tanto como de me ver com o meu cabelo natural.  Aprendi a mudar e acima de tudo a fugir de imagens estereotipadas.

Pergunto-lhe se não está a seguir os padrões caucasianos... A Catarina pacientemente explica: “eu vivo na Europa já há tantos anos que essas questões para mim não fazem sentido. Eu uso o que me apetecer e o que acho que me fica bem.

Os seus cabelos sedosos e brilhantes são manifesto deste padrão ‘classy’: “A verdade é que eu fiz, porque sempre foi o meu sonho. Nunca um cabeleireiro o quis fazer. Porque dizia que eu tinha cabelo de preta e não ia resultar... Catarina, tens o cabelo muito seco, vais dar cabo do cabelo”. E ainda especifica: Na época em que desfilava a aparência era sempre a mais ocidental possível. Cabelos lisos e escorridos, se não fossem capazes de o fazer punham uma peruca. Hoje já não. Hoje é o contrário. Agora é estimular o exótico. Se és negra vais evidenciar o teu afro, os teus rastas, dreadlocks.

 Na moda como eu a entendo, menos é mais.  Mas entendo o porquê da moda se ter tornado mais eclética.

Vivemos em tempos de Kardashianização, que geram novos conceitos de beleza. Modelos que se impõem através das redes sociais e que desafiam os padrões de estilo e moda com os quais cresceu profissionalmente a nossa entrevistada. A entrevista com a Catarina Insiro mostra como a beleza é obviamente um produto cultural, cuja componente ideológica é evidente: desde o começo da sua carreira aos dias de hoje a beleza está a se redefinir e os seus contornos a ser reinventados: “estamos a viver uma era de Kardashianização e muita gente chega ao meu consultório querendo ficar com este rosto e corpo padrão”, conta-nos um médico de uma famosa clínica estética. Os modelos de referências são múltiplos e cada vez dinâmicos especialmente por causa do impacto que os meios de comunicação e as influenciadoras digitais exercem nas nossas vidas. Aqui abre-se uma dimensão que tem claras implicações políticas: compreender quem define e cria estes modelos, quem tem o poder de os divulgar e impor como hegemônicos e como estes se transformam em desejos e aspirações individuais, torna-se uma questão muito séria. E é esta questão um dos temas centrais sobre o qual no projeto EXCEL tentamos refletir na base do nosso trabalho de terreno e das entrevistas que, como neste caso, nos permitiram divulgar.