O Cuidado em tempos de pandemia. Cuidar de si e a “injunção” ao bem-estar

Por Helena Prado

Ilustrações: André Dahmer (tiradas de: https://www.facebook.com/malvadoshq/)

 

Quando se fala em cuidado de si nunca estamos muito longe da questão das práticas corporais de enhancement - sejam elas estéticas, cognitivas, espirituais, sexuais etc.-, que estão no coração das investigações do projeto EXCEL. O que aprendemos sobre práticas sociais e corporais de enhancement durante e após a epidemia?

Logo nas primeiras semanas da quarentena, tem surgido investigações jornalísticas a respeito do cuidado do corpo e da aparência em tempos de COVID-19. Um tema mais ligeiro e corriqueiro para falar das mudanças que têm ocorrido na vida íntima das pessoas. Assim aprendemos que uma grande parte dos “confinados”, já não tomava banho todos os dias – não houve detalhes sobre higiene íntima... Da mesma forma, a maioria não usava mais roupa social tendo preferência para roupas confortáveis para ficar em casa (sem falar da quantidade de vizinhos de roupão que podíamos ver das nossas janelas) – o que até despertou em certas marcas a ideia marketing de fabricar roupas confortáveis que aparentam ser roupas sociais (para todos que trabalham a distância e usam teleconferência). A noção de “conforto” e “bem-estar” está associada aqui ao espaço doméstico, enquanto o espaço físico do trabalho (e da rua) é da (boa) aparência, e exige um cuidado específico que necessita de deixar de lado o “conforto”.

Na página Instagram de uma renomada cirurgiã plástica, vaidosa, descrevendo seu dia a dia em casa com crianças, sempre bem arrumada, no entanto, ela uma vez percebe que há semanas já não usa seu perfume, e explica como o produto está ligado ao fato de sair de casa. Os saltos agulhas também ficaram confinadas no closet imenso que ela tem em sua casa. “Saudades”, ela comenta. As mulheres de modo geral diminuíram o uso de cosméticos, sobretudo de maquilhagem, na rotina quotidiana.

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Porém, como salienta Chiara Pussetti a partir de uma investigação online: “os consumos online de produtos de estética e bem-estar têm se mantidos elevados e numa primeira análise qualitativa dos comportamentos dos consumidores posso afirmar que o COVID-19 não diminuiu o desejo de beleza e a vontade de cuidar de si.” A busca pelo cuidado estético que se vê em redes sociais, tutoriais de beleza em casa, é invocada a partir do lema da responsabilidade individual a não ser “desleixada” e “negligente” (ver texto Chiara Pussetti). O mesmo tem acontecido com o cuidado físico através de exercícios; multiplicaram-se as práticas de desporto online, ao vivo, ou ainda os vídeos no youtube para seguir uma rotina saudável. Ou ainda com a culinária: tomar o tempo de cozinhar coisas gostosas e saudáveis. Apesar da “acessibilidade” ao desporto e a gastronomia sem sair de casa, as estatísticas jornalísticas lembram-nos que em média engordamos de 2,5 kg desde o início da quarentena…

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O tema do cabeleireiro foi outro assunto bastante comentado pelos jornalistas – e não só pelo ponto de visto dos próprios cabeleireiros em grave crise econômica com seus comércios. Apareceram diversos memes nas redes sociais com cortes de cabelos ridículos, nuances de cores nunca vistas, ou ainda tutoriais feitos por profissionais para cuidarmos sozinhos em casa de nossos cabelos... Tendo isso em vista, não há nada de surpreendente em ser a primeira coisa que queremos fazer quando chega o de-confinamento (ver texto Isabel Pires), e isto não só em Portugal mas também na Itália, na França, nos Estados Unidos segundo as reportagens mediáticas. Ao ponto de nos perguntarmos se a estética do cabelo não é um ponto universal para todas as sociedades do mundo (ou ao menos do ocidente, onde o cuidado do cabelo foi terceirizado): “Hair is beauty, hair is power! Wonderful hair leads to wonderful opportunities!” como diz a heroína de Self Made, a minisérie de Netflix - outra atividade favorita de quarentena para nosso indicador de “bem-viver”.

Dentro de nossos campos de investigação no projeto EXCEL, há ainda o caso específico das pessoas - sobretudo mulheres – que estão à espera de passar por cirurgias estéticas e outros procedimentos de beleza diversos. Segundo os relatos nas redes sociais, nos grupos de mulheres, a decepção foi grande quando tiveram que adiar as cirurgias tão esperadas, muitas vezes há meses ou anos, e ainda mais quando tiveram que remarcar com profissionais (sempre selecionados com muito cuidado e ansiedade). O que esta quarentena e seus efeitos colaterais significam para o cuidado de si, quando já se está dentro de processo de transformação física e estética no qual se investiu bastante (financeira e mentalmente)?

Além do cuidado físico e estético de si, surgiu quase de imediato a questão do cuidado mental e intelectual; como viver bem o confinamento sem cair na depressão? Como lidar com o ócio e continuar tendo uma rotina “produtiva” (muitos tutoriais explicam como se deve trabalhar em casa, seguindo uma rotina similar àquela do trabalho físico: se arrumar como se fosse para sair, manter horários fixos)? Como aproveitar este tempo “livre” (para quem não pode trabalhar) para ler todos os livros, ver todos os filmes que deixaram de ser lidos e vistos por questão de tempo, ou de cansaço? Ou ainda, como mergulhar numa introspecção sobre a nossa própria vida, sobre o andamento do nosso mundo? Neste caso, podemos nos perguntar qual foi o uso de substâncias psicotrópicas para atingir esta introspecção – sabemos que ao menos o consumo de bebida alcoólica teve algum papel.

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Ainda no aspeto do cuidado mental, André António (ver texto) nos lembra que uma questão é essencial, tanto ao nível coletivo que individual: encontrar o sentido da doença e da pandemia. Abre-se então a caixa de pandora para a busca de discursos de conspiração e políticos, religiosos, naturalistas ou ecológicos, ou económicos. Qualquer que seja o entendimento que temos do que atravessamos durante a quarentena, um discurso vem se propagando de forma mundial: o apelo à responsabilidade individual para o cuidado do outro, e principalmente o cuidado dos mais vulneráveis entre os quais os idosos. Um paradoxo emerge: o cuidado do outro passa por seu isolamento social – que forma(s) assume o enhancement para esta parte da população vulnerabilizada?

Ligado ao cuidado mental, quais seriam as práticas de cuidado espiritual?

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A questão do cuidado de si através das relações sexuais (e, por vezes, talvez, do enhancement sexual?) parece, segundo os jornalistas, ter sido dividida entre dois grupos de pessoas: os casais sem filhos, confinados juntos, que aproveitam “copiosamente” deste confinamento e da intimidade “forçada” por um lado; e as pessoas solteiras, vivendo ou não sozinhas, os casais com filhos que exigem cuidado e educação escolar, que sofrem todos de uma ruptura de contato íntimo e sexual, seja por falta de oportunidade de conhecer pessoas ou de encontrar os cônjuges confinados à distância, seja pelo cansaço provocado pelo cuidado a tempo integral de filhos.

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A própria condição do Coronavírus e a forma como se transmite através do contato físico entre pessoas, tem imposto um distanciamento físico e social entre indivíduos, dos desconhecidos na rua, até nossos próximos dentro de casa.

De que forma isto altera nossas relações como seres de carne e afetos?